Idoso tem identidade roubada, é dado como morto e descobre ser ‘pai’ de filhos que não são dele
Morador de BH descobriu golpe depois de 40 anos, quando teve a aposentadoria cortada; farsante viveu com o nome dele em Goiás e o MP do Estado pede investigação
MINAS GERAIS|Bruno Menezes e Shirley Barroso, da RECORD MINAS
Antônio Fraga teve a aposentadoria cortada em 2023 e quando foi ao INSS descobriu que foi dado como morto no sistemaShirley Barroso/RECORD MINAS - 19.02.2025
Com a própria certidão de óbito em mãos, porém vivo no auge de seus 73 anos, o aposentado Antônio Fraga, mineiro de Belo Horizonte, tenta solucionar um drama que o atormenta há quase um ano e meio: provar para os órgãos públicos que ele está vivo.
A situação inusitada fez com que desde setembro de 2023 ele ficasse sem receber a aposentadoria - sua principal fonte de renda - tivesse o CPF cancelado e, consequentemente, perdesse os direitos comuns de todo cidadão. Tudo porque um outro homem teria assumido a identidade dele há cerca de 40 anos, quando o belo-horizontino perdeu a carteira de identidade nas imediações da rodoviária de Belo Horizonte. O caso foi parar na Justiça e o Ministério Público pediu investigação.
Fraga descobriu a farsa quando procurou o INSS (Instituto Nacional do Seguro Social) e a Receita Federal para saber o motivo de ter tido a aposentadoria cortada. No sistema dos dois órgãos consta que Antônio Fraga está morto.
Com auxílio de uma advogada, o mineiro começou a investigar o caso e descobriu que a certidão de óbito dele foi lavrada em um cartório de Aparecida de Goiânia, em Goiás, estado nunca visitado pelo idoso.
O documento
Ainda na década de 80, Antônio Fraga perdeu uma via da carteira de identidade, emitida no ano de 1975, nas imediações da rodoviária de Belo Horizonte, na região Central da cidade. Ele não registrou boletim de ocorrência.
Identidade falsificada e documento atual de Antônio FragaReprodução/RECORD MINAS
“Eu havia arrumado um trabalho em São Paulo. Não me lembro se estava indo ou voltando de lá, mas perdi o documento na rodoviária. Tirei a segunda via. Hoje, já estou na terceira, inclusive a com nova identidade que tirei depois de ‘morto’. Eu estou vivo só para pagar impostos, mas para receber da Previdência, não”, lamenta.
No sistema da Receita Federal que traz a morte de Antônio, consta uma cópia da carteira de identidade dele, a mesma emitida em 1975, mas com a foto de outro homem, com características bem diferentes.
“Esse homem, provavelmente, achou minha carteira na época, substituiu minha foto e foi viver em Goiás. No Instituto de Identificação, quando eu fui pegar uma declaração de que eu estava vivo, a delegada me falou que no passado deste homem constavam alguns crimes”, revelou o aposentado.
O farsante
José Anastácio da Silva - nome original do homem que assumiu a identidade de Antônio - registrou os três filhos que teve em Aparecida de Goiânia no nome de Antônio Fraga. São dois homens e uma mulher. Foram quase quatro décadas usando os dados do mineiro, até setembro de 2023, quando ele morreu, em Goiás.
De posse das informações, Fraga encontrou a família do farsante, no estado vizinho, e escreveu uma carta para que eles soubessem da história. A partir daí, eles passaram a ter contato.
“A filha ficou assustada, porque ela não sabia. Para ela e todo mundo na cidade, o homem se chamava Antônio. Quando ela ficou sabendo que ele chamava José, ela ficou desesperada. Ninguém poderia imaginar que ele tinha outro nome”, detalha o idoso.
A família encontrou os documentos originais de José Anastácio dentro de um baú onde ele guardava objetos pessoais na casa.
Justiça
O caso foi para na Justiça por meio de quatro processos. Três deles, movidos pela advogada Adriana Lopes. “Nós entramos com uma ação no TRF-6 [Tribunal Regional Federal da Sexta Região], para restabelecimento do benefício previdenciário. Tivemos audiência no fim do ano passado e o juiz disse que em 29 anos de magistratura nunca viu um caso desse. Todos os dados lançados são do meu cliente e a única divergência que é o meu cliente é de cor branca e quem faleceu é de cor negra. Diante disso, o juiz expediu liminar para restabelecer a aposentadoria dele”, explica a advogada.
Com a decisão em mãos, Fraga foi até a Receita Federal para retirar o nome dele da lista de falecidos e reaver a aposentadoria. Apesar da liminar, ele foi informado que só poderia voltar a receber o benefício com uma nova decisão da Justiça para cancelar o óbito em nome dele.
“Esse segundo processo se encontra em tramitação na Vara de Registro Público de Belo Horizonte. O processo se encontra em trâmite normal, mas independente disso, o meu cliente se encontra ‘falecido’, sem o benefício previdenciário há mais de um ano, com o CPF cancelado e sem existir oficialmente perante a sociedade”, criticou a advogada.
Uma terceira ação impetrada pela advogada pede indenização ao Cartório Oliveira, localizado em Aparecida de Goiânia, por ter lavrado o óbito. “Era um documento com uma falsificação grosseira”, comenta Adriana.
A quarta ação é movida pela família do José Anastácio para tirar o nome de Antônio Fraga da certidão de nascimento dos três filhos. A reportagem procurou a família, que preferiu não comentar sobre o assunto.
O advogado dos filhos, Raphael Henrique, afirma que eles não sabiam de nada, ficaram surpresos com a situação e que o processo na Justiça de Goiás está tramitando com normalidade. “Esse tipo de processo exige a participação do Ministério Público. Estamos na fase de instrução. O processo está andando bem e acredito que não demore muito, até para as famílias seguirem seus caminhos. Eles (os filhos) levaram um susto quando receberam a carta do Antônio Fraga”,
Sem a aposentadoria, Fraga vive de trabalhos temporários. Ele conta que a situação tem trazido problemas físicos e psicológicos. “Morto vai ao médico?”, questiona. “Estou fazendo um tratamento na coluna e com um psicólogo por conta dessa situação”, lamenta.
Investigação
Na esfera Cível, o processo para retirada do nome de Fraga da certidão de nascimento dos filhos de José Anastácio tramita em segredo de Justiça. O MPGO (Ministério Público de Goiás) informou que tomou conhecimento do caso a partir de uma denúncia feita pelo próprio Antônio Fraga, no dia 24 de janeiro deste ano, via internet e que está acompanhando o processo.
Em paralelo, o MPGO também informou que a promotoria criminal pediu, na última terça-feira (18), que a 2ª Delegacia Regional de Polícia de Aparecida de Goiânia instaure uma inquérito criminal par apurar o caso. A reportagem procurou e aguarda um posicionamento da PCGO.
Posicionamentos
Procurada, a Receita Federal informou que os dados sobre cada contribuinte “são protegidos por sigilo fiscal, sendo acessíveis somente pelos próprios contribuintes ou por seus representantes legais ou procuradores” e que o sigilo só pode ser quebrado por via judicial.
O Cartório Oliveira, que lavrou a certidão de óbito do aposentado, em Aparecida de Goiânia, afirmou que já se manifestou nos processos judiciais e que “em virtude da preservação da intimidade das famílias envolvidas, o Cartório aguardará a decisão da Justiça para cumprimento”. Eles destacaram que “que o registro questionado foi feito no mais estrito cumprimento da lei.”
O TJMG (Tribunal de Justiça de Minas Gerais) informou que não localizou qualquer processo criminal em nome de José Anastácio da Silva em Minas. Sobre o processo de cancelamento do óbito, a corte informou que “o Ministério Público se manifestou pela desnecessidade de intervenção ministerial no feito, ressaltando que ao MP somente cabe intervir em processos em que há interesses máximos da sociedade” e que o “processo foi concluso para decisão do juiz e não é possível prever quando será dado novo despacho”.
INSS informou por meio de nota que a corte do benefício do aposentado “foi feita em conformidade com a legislação, a partir das informações constantes no Sistema Nacional de Informações de Registro Civil (SIRC)”. O órgão informou que Fraga procurou uma agência do INSS no ano passado e foi aberta uma solicitação de Correção de Registro pelo Cartório, que foi encaminhada para o INSS de Goiânia.
“No prazo de uma semana, o INSS de Goiânia concluiu o requerimento, informando que o referido Cartório de Registro Civil das Pessoas Naturais, em Aparecida de Goiânia, indeferiu o pedido de correção. A justificativa foi de que a Serventia não pode alterar informações do registro de Óbito, sem mandado judicial, visto que os documentos que deram origem ao registro estão em conformidade com o referido registro de óbito”, diz a nota.
Uma nova solicitação deve ser feita junto ao INSS quando a nova decisão da Justiça que cancela o óbito for deferida.
A Polícia Civil de Minas declarou que não localizou nenhum boletim de ocorrência sobre o caso e orientou que a vítima procure uma delegacia de polícia.